11 maio 2010

O eu, o nós e as muletas morais

Eu já escrevi sobre este assunto, há muito tempo, todavia acho interessante voltar a falar sobre ele, por algumas razões que acho relevantes: A primeira delas é o surgimento de um número considerável de novos leitores, no decorrer destes anos, desde quando escrevi da outra vez, a outra é porque acho que há necessidade de repensarmos alguns modelos de comportamentos que a sociedade adota, pautados na evolução de fachada, na humildade teatralizada, no sofisma e, para ser bem mais claro, na frescura mesmo. E haja hipocrisia.

Vivemos uma época de modismos descartáveis, aliás, as modas sempre são descartáveis, porque as utilizamos hoje e, de repente, deixa de ser moda e nos vemos obrigados a adotar as novas que surgem.

Eu não consigo ser eu mesmo, porque me vejo na necessidade de ser fantoche da sociedade, obrigando-me a vestir-me conforme todo mundo veste, a comportar-me conforme todo mundo quer que eu comporte e a também falar da forma como todo mundo está falando.



Recentemente eu cheguei a um auditório, onde faria uma palestra para uma platéia de umas oitocentas pessoas, mais ou menos, quando um conhecido, amigo do meu anfitrião, veio correndo em minha direção, com um certo nervosismo e com muito cuidado, falou baixinho ao meu ouvido:

- "Desabotoe o terceiro botão do seu paletó. Estão todos três abotoados".

- "Uai, mas por quê eu tenho que desabotoar o terceiro botão?"

- "Ora, mas você não sabe? Não se abotoa todos os botões dos paletós. Um TEM que ficar desabotoado."

- "Não se preocupe não. Não tem problema, deixa abotoado mesmo".

- "Não fica bem, tem muitas pessoas da sociedade daqui da nossa cidade, na platéia, para ver a sua palestra, e, de repente".

Ele ficou muito preocupado e, inconformado, foi até o meu anfitrião, que era o organizador do evento e começou a cochichar no ouvido dele, tudo indica tratando do mesmo assunto, posto que ambos falavam olhando para mim, mais especificamente para os botões do meu paletó.

Se o paletó tiver dois botões, um tem que ficar desabotoado. Se tiver três, abotoa-se dois e deixa um. Afinal de contas, quem foi que inventou essa moda tão besta?

Só sei que fiz a palestra, com os três botões abotoados, fui até aplaudido de pé e várias pessoas da tal sociedade local vieram me cumprimentar, tirar fotografias e aquelas coisas que normalmente as pessoas fazem.

Tenho a impressão que o meu terceiro botão do paletó, abotoado, não incomodou ninguém, porque nas fotografias, certamente, todos apareceram devidamente e oficialmente abotoados.

A grande realidade é que as pessoas adotam certos modismos, submetem-se a eles sem se darem ao trabalho de avaliá-los, analisá-los e discernirem sobre as suas utilidades ou não.

Durante algum tempo, recente, estava na moda a palavra "alavancar" que nós escutávamos em oito, de cada dez entrevistas que víamos na televisão, no rádio, nos jornais e nas revistas, principalmente vinda dos políticos:

- "Este projeto que o governo está desenvolvendo, visa alavancar...", "A prefeitura pretende alavancar..." e haja alavancação.

Hoje encontramos outro modismo bem besta, que é o "antes de mais nada".

- "Antes de mais nada, eu gostaria de cumprimentar o senhor presidente...", "Antes de mais nada, eu quero pedir atenção...", "Antes de mais nada, eu quero pedir desculpas..."

Você já percebeu que expressão mais besta, sem sentido, que não diz p... nenhuma, esse tal "antes de mais nada", que não tem porquê fazer parte de discurso ou escrita nenhuma?

Mas as pessoas adotam como modismos e vão usando, usando, usando... Por que? Porque todo mundo usa.

Nós somos eternos escravos dessa praga chamada todo mundo.

Certo dia eu assistia o Jô Soares, em seu conhecido programa da Globo, entrevistar um cidadão que havia escrito um determinado livro, que era o tema da entrevista, e o entrevistado, repetidas vezes falava:

"Este livro surgiu de uma inspiração que nós tivermos... Nós passamos três anos em pesquisa, para escrevê-lo... Ao abordarmos aquela questão, nós achamos que..."

E o Jô, com o livro na mão, olhando bem a capa e examinando as primeiras páginas, naquele seu conhecido estilo, o interrompeu e perguntou:

- "Você escreveu este livro em parceria com alguém? Pelo que estou vendo aqui, só há um autor, que é você, porque só consta o seu nome".

- "Exatamente, Jô, nós somos o autor do livro".

- Mas, nós quem?

Aí o gordo famoso começou a questionar essa coisa do "nós", que as pessoas utilizam para substituir o "eu".

Pelo que eu aprendi, no meu estudo básico, as pessoas do verbo são:

Eu, tu, ele, nós, vós, eles.

Ou será que mudou para nós, tu, ele, nós, vós, eles. Deixou de existir o eu?

Se eu, quando realizar alguma coisa, sozinho, de minha autoria, tenho que dizer que "nós fizemos esta coisa"; como eu deverei dizer, então, quando fizer a coisa em parceria com algumas pessoas, ou seja, algo feito por mais de uma pessoa?

Seria "nozes fizemos esta coisa"?

Deu pra perceber que modismo mais idiota?

Na outra vez que abordei este assunto, recebi protestos de alguns leitores sob a alegação de que quando dizemos "eu fiz", necessariamente estamos sendo presunçosos. "Mesmo que eu faça alguma coisa, só eu, sem a participação de mais ninguém, eu tenho que dizer nós fizemos, para mostrar humildade".

Que coisa mais ridícula.

Gente, será possível que a sociedade é tão carente de valores morais, que depende tanto da utilização desses recursos e dessas muletas, para poder dar impressão, aos outros, de que é humilde?

Não será mais apropriado que os palhaços procurem ocupar os seus lugares nos picadeiros dos circos?

Por que motivo a criatura humana tem tanta dificuldade em ser ela mesma?

Se eu sou um excelente pianista, sei que toco bem, ouço as gravações das músicas que eu toco, percebo que sou afinado, que utilizo bem os efeitos, que tudo sai sempre com boa harmonia e ritmo, todo mundo percebe isto, que coerência eu tenho em sair afirmando que eu não toco nada?

Se saio para comprar roupas, ando de loja em loja experimentando várias peças, olhando-me no espelho para escolher bem o que fica bem em mim, o que fica bonito em mim, o que fica elegante em mim; depois visto uma dessas roupas, vou a algum lugar, alguém me encontra e diz que estou elegante e que estou bonito; que coerência tem eu em utilizar-me daquela outra frase besta: "Que nada, não estou bonito não, são seus olhos."

Ora, que vá caçar o que fazer e que deixe de frescura.

Você conhece alguém que vai a alguma loja comprar roupas e pede para que o vendedor escolha uma roupa bem feia, para que, quando vestir, esteja consciente de que está feia, parecendo a mãe do meu amigo Pedro de Lara, para ter consciência de que a outra pessoa esteja, de fato, vendo uma coisa feia e que são os olhos dela, por muita bondade, que está vendo beleza?

Atenção, Ana Paula Arósio! Você não é linda não, viu? são meus olhos.

Qual o problema que temos em dizer, simplesmente, muito obrigado, quando alguém percebe, diz e até elogia uma das qualidades que a gente tem?

Por acaso, é crime sermos autênticos, sinceros, coerentes e honestos?

Existem outras citações que são pronunciadas, com base no todo mundo diz.

Se morre um famoso ator, por exemplo, outro cidadão é entrevistado para falar dele e, invariavelmente, diz:

- "Fulano foi um divisor de águas no teatro brasileiro, que se divide antes e depois dele".

Quando Paulo Autran morreu, disseram isto. Quando morreu Raul Cortez, alguém disse também.

Se morre um juiz ou um desembargador, sempre aparece um entrevistado para dizer:

- "O Doutor fulano foi um divisor de águas na magistratura do nosso Estado, que se divide antes e depois dele".

Quando o Clodovil morreu, ano passado, alguém disse na televisão que ele fora um divisor de águas na alta costura brasileira, que se dividia antes e depois dele. Provavelmente alguém disse a mesma coisa quando o Denner morreu.

E por aí vai.

Tem também outro caso interessante, que sei que todos vão se lembrar:

Outro dia eu estava participando de um evento, em São Paulo, e alguém estava fazendo uma exposição e, em determinado momento, fez alguma referência à cidade de Belém do Pará.

Para ilustrar a sua palestra, obviamente para fazê-la ficar bem bonita e bem cultural, resolveu dizer que Belém é aquela cidade que chove todo dia e que as pessoas marcam encontros para antes ou depois da chuva.

O pior é que o infeliz, sabendo que eu vivi muito tempo em Belém, caiu na besteira de perguntar:

- "Não é verdade, Alamar?"

Aí eu tive que responder: "Não, isto não é verdade não. Morei lá mais de vinte anos e nunca vi ninguém marcar encontro nenhum antes ou depois de chuva nenhuma".

Ele ficou meio sem jeito, falou que todo mundo sabia disto, mas eu disse que não é verdade e que é um equívoco.

E muitas bobagens vão sendo ditas, porque todo mundo diz, sem que as pessoas tenham a dignidade de procurar saber se de fato tem fundamento:

"A Bahia é a terra da macumba!"

É outra mentira. Na verdade, a Bahia não é nem o primeiro estado, é o quinto, na relação dos estados brasileiros onde se pratica aquilo que o outro equívoco das pessoas qualifica como macumba.

"Baiano é preguiçoso e não quer nada com trabalho".

Mentira, também. O Dorival Caymmi inventou isto, de brincadeira, e todo mundo adotou como verdade. O baiano é um dos povos mais trabalhadores deste pais, sérios e dedicados ao trabalho, e ainda tem outra coisa: É o que atende os clientes, da forma mais carinhosa, em todo o país.

"Os espíritas consultam espíritos"

Mentira, espírita não consulta espírito nenhum. Pouquíssimos são os espíritas que tem contato com espíritos.

"Na Paraíba mulher dá porrada no marido".

Outra mentira. Tem muito marido sem vergonha que merece porrada da mulher, mas na Paraíba não tem nada diferente, em relação a isto, em se comparando com os outros estados.

Enfim, existe muita falação besta, por este Brasil a fora, que precisa ser contestada e o povo não deve levar em consideração.

Creio ser hora de revermos alguns conceitos, para nos despirmos das máscaras e dos modismos ridículos.



Abração.



Alamar Régis Carvalho

Analista de Sistemas, Escritor, ator, profissional de televisão.

Criador da idéia do Partido Vergonha na Cara - www.partidovergonhanacara.com
alamar@redevisao.net

www.alamar.biz - www.redevisao.net - www.site707.com

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